sexta-feira, 25 de março de 2011

O PRAZER DO TEXTO - Roland Barthes

Por Ema Dias dos Santos
Meu primeiro contato com a obra de Barthes foi na década de 80, quando cursava a disciplina de Filosofia da Comunicação. Primeiro li o texto Aula, que registra uma aula inaugural da cadeira de Semiologia Literária do Colégio de França, proferida em janeiro de 1977. Fiquei encantada. A fluidez com que tece seu discurso - sempre com desenvoltura e inteligência -, e sua forma absolutamente peculiar de lidar com a linguagem me impressionaram profundamente. Foi já através desse texto que me deparei com a preciosa idéia de um “saber com sabor”:“(...) a escritura faz do saber uma festa. (...) a escritura se encontra em toda parte onde as palavras têm sabor (saber e sabor têm, em latim, a mesma etimologia)” (p. 21). Depois mergulhei na leitura deO prazer do texto. E, algum tempo após, assisti à montagem teatral baseada em Fragmentos de um discurso amoroso, encenada pelo grupo de Antônio Fagundes. Passeei também por outras produções do autor, mas, definitivamente, as mais significativas para mim tem sido mesmo Aula e, em especial, O prazer do texto, verdadeiras obras-primas que merecem ser lidas, relidas e mantidas como livros fundamentais para quem se interessa pelo universo da palavra. 
O prazer do texto não é apenas uma obra sobre literatura, mas um convite instigante para o pensamento e a reflexão, transitando por diversas áreas. A intertextualidade é constante, com uso freqüente de citações e referências a vários autores: “a literatura como uma grande colagem de saberes” (Giamatei, 2003). O autor vai lançando suas idéias em trechos geralmente curtos, simultânea e paradoxalmente densos e leves, seduzindo o leitor com seu estilo. Até mesmo na superfície da própria linguagem Barthes coloca em prática sua proposta de uma subversão sutil: ele não tem pudor de abusar de dois-pontos (às vezes repetidos na mesma frase), de parênteses, de travessões, de aspas, de negritos, ou até mesmo da ausência de algumas pontuações onde elas seriam previsíveis.
Se o objeto livro, como afirmou John Steinbeck, é “uma das pouquíssimas mágicas autênticas que nossa espécie criou”, Roland Barthes consegue explicitar um pouco do funcionamento dessa mágica que se dá através do texto, na qual escritor e leitor são os principais protagonistas. Ele oferece algumas pistas que podem ajudar a responder à pergunta: O que impele o escritor a produzir textos? Por que e para quem ele escreve?
Esse leitor, é necessário que eu o procure, (que eu o “engate”), sem saber onde ele está. Cria-se então um espaço da fruição. Não é a “pessoa” do outro que me é necessária, é o espaço: a possibilidade de uma dialética do desejo, de uma imprevisão do fruir: que os dados não estejam lançados, que exista um jogo.(p.37)
O texto é processo e não produto. Não é o veículo da “verdade”, vista como pronta, acabada, inquestionável, como a meta que o leitor deve atingir. O leitor não é um objeto passivo, colocado num plano inferior, e o autor não é um sujeito iluminado, superior, dono da verdade: 
Na cena do texto não existe ribalta: não há por detrás do texto ninguém ativo (o escritor) nem diante dele ninguém passivo (o leitor); não há um sujeito e um objeto. O texto prescreve as atitudes gramaticais: é o olho indiferenciado de que fala um autor excessivo (Ângelus Silesius): “O olho com que eu vejo Deus é o mesmo olho com que ele me vê.” (p.52)
Simplesmente, chega um dia em que se sente uma certa urgência de desaparafusar um pouco a teoria, de deslocar o discurso, o idioleto que se repete, toma consistência, e de lhe dar o impulso de uma pergunta. O prazer é essa pergunta. Como nome trivial, indigno (quem se afirmaria hoje hedonista, sem rir?), pode dificultar o retorno do texto à moral, à verdade: à moral da verdade: é um indireto, um “derrapante”, se assim se pode dizer, sem o qual a teoria do texto tornaria a ser um sistema centrado, uma filosofia do sentido. (p. 113) 
E, livres da noção de verdade única, podemos então imaginar o que há de promissor na idéia de uma “Babel feliz”, onde a diferença não só é possível, como é valorizada: 
Que a diferença se insinue subrepticiamente no lugar do conflito”. (p.51) 
(...) a agressão é apenas a mais deformada das linguagens. (p.51)
(...) quem é que suporta sem vergonha a contradição? Ora, este contra-herói existe: é o leitor de texto, no momento em que experimenta o seu prazer. Então o velho mito bíblico inverte-se, a confusão das línguas deixa de ser uma punição, o sujeito tem acesso à fruição através da coabitação das linguagens, que trabalham lado a lado: o texto de prazer é Babel feliz. (p.36) Para quem aprecia o tempero do “sal das palavras”, eis duas excelentes leituras, afinal, “é esse gosto das palavras que faz o saber profundo, fecundo” (Aula, p.21). 
São obras pouco extensas, de preço bem acessível (meus exemplares são antigos, mas há edições mais atualizadas pela Cultrix/Aula e pela Perspectiva/O prazer do texto, por menos de R$ 15,00 cada).
(Le plaisir du texte, 1973. Leçon, 1977.)
O prazer do texto. Tradução de Maria Margarida Brahona. Lisboa: Edições 70, 1974. (117 páginas)

Aula. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Cultrix. (89 páginas)
Leia também:
PERRONE-MOYSÉS, Leyla. Roland Barthes – o saber com sabor. São Paulo: Brasiliense, 1983.
GIAMATEI, Crícia. A escrita do deleite. Jornal da USP. 2003 Set 15 a 21 [acesso em 2009 Set 21]. Disponível em:http://www.usp.br/jorusp/arquivo/2003/jusp658/pag17.htm