domingo, 31 de julho de 2011

A CASA DOS ESPÍRITOS - Isabel Allende


Por Ema Dias dos Santos
    Numa narrativa em que realidade e ficção se misturam, a "casa dos espíritos" é o principal cenário onde se desenrola a saga da família Del Valle/Trueba, através da qual a autora dá seu testemunho sobre a história do Chile no século XX até a década de 70.
Conforme afirma Alexandra Gomes, em seu artigo “A Casa dos Espíritos”, Isabel Allende começou a escrever a obra em 1981, como uma espécie de carta de despedida para seu avô, que estava à morte. As referências a fatos e pessoas reais perpassam toda a narrativa: o golpe militar; o assassinato do Presidente Salvador Allende (tio da autora), que no livro aparece como o “Presidente”; o carisma, a obra e a morte do poeta Pablo Neruda, denominado apenas de “O Poeta”; a trajetória do cantor revolucionário Victor Jara, através do personagem Pedro Tercero – o qual, entretanto, terá um destino melhor na ficção do que a tortura e o assassinato que, na verdade, seu inspirador sofreu.
Mas, apesar de tanta e tão dura realidade, o tom fantástico impera. Misticismo, espiritualidade, mitologia e simbologias são aspectos muito presentes, relacionados sobretudo às personagens femininas. 
Embora o personagem principal seja o duro patriarca Esteban Trueba, as mulheres têm personalidades fortes e são decisivas para o movimento da narrativa. Esses dois universos estarão em constante conflito. Desde a bisavó de Alba, Nívea Del Valle, que lutava pelo direito ao voto feminino e ao acesso à instrução; passando pela avó Clara que, a despeito do marido, continuou essa luta; pela mãe Blanca que também se preocupou com os excluídos e, além disso, desafiou o pai em nome de seu amor; e pela própria Alba – uma das principais vozes que narra esta história polifônica, e na voz de quem se encerra a narrativa – a qual desenvolveu uma intensa atividade de apoio aos perseguidos pela ditadura, até cair ela própria nas mãos da polícia política. São todas mulheres que, em nome do que acreditavam, enfrentaram, não apenas a força do patriarcado – personificado na figura de Esteban -, mas também o conservadorismo da alta sociedade chilena.
 E é através de uma personagem feminina que, talvez, nos venha uma das grandes reflexões provocadas por este livro. É Clara quem nos ensina, com simplicidade e sabedoria, que precisamos aceitar nossos filhos em sua singularidade. A empatia estabelecida entre ela e seus filhos contrasta com a distância que existe deles em relação ao pai, e lhe permite uma relação bem mais próxima e profunda do que poderia ter obtido se tivesse optado por submetê-los à adaptação às expectativas externas. Ela tem a coragem de colocar os sentimentos de seus filhos acima de qualquer programa educativo.
Mas a maior lição, mesmo, advinda desta leitura, em minha opinião, é a da inutilidade do ódio. Mesmo a truculência de Esteban Trueba vai se modificando, permitindo-lhe relações diferentes com Pedro Tercero, com a neta Alba, com o espírito de Clara, e consigo mesmo. No final, há um trecho muito eloqüente em que Alba registra, magistralmente, essa compreensão:

“Será para mim muito difícil vingar todos os que têm de ser vingados, porque a minha vingança não seria senão outra parte de um rito inexorável. Quero pensar que o meu ofício é a vida e que a minha missão não é prolongar o ódio.” (p.468)



Sobre a obra, veja também os artigos de Alexandra Gomes (http://booklovers.blogs.sapo.pt/987.html) e de Cláudia de Sousa Dias (http://hasempreumlivro.blogspot.com/2008/11/casa-dos-espritos-de-isabel-allende.html).  


(La casa de los espiritus, 1982.)

sexta-feira, 25 de março de 2011

O FIO DA NAVALHA - William Somerset Maugham

Por Ema Dias dos Santos


William Somerset Maugham é tido como um grande contador de histórias. Em seus livros não há grandes exercícios experimentais e malabarismos com a linguagem ou com a estrutura. São narrativas relativamente convencionais, tradicionais, com uma unidade, em linguagem objetiva e simples. Isso lhe rendeu um certo menosprezo da crítica. Ao que consta, ele mesmo chegou a afirmar que podia ser considerado “um escritor dos melhores entre os escritores da segunda fila”
Entretanto, o que há de melhor, nesta obra, transcende o aspecto formal. O escritor coloca-se como um dos personagens, e, embora a voz que narra a história seja a sua, ele consegue fazer com que isso não inviabilize uma polifonia que talvez seja um dos pontos altos da narrativa. A relação do autor-personagem-narrador com os demais personagens, a empatia com que compreende o que é essencial, vital para cada um, conseguindo superar os julgamentos externos e até mesmo internos, a forma como lida com as diferenças, permite que o leitor veja a integridade e/ou coerência com que cada personagem se comporta para equilibrar-se sobre o fio da navalha que é a vida, cada qual dentro de valores próprios, sem renunciar a seus princípios.
O grande personagem do livro é Larry Darnell, um indivíduo em busca de si mesmo, à procura de respostas para questões fundamentais, que, corajosamente, alheia-se das cobranças externas, renunciando ao conforto material, colocando-se ao largo dos signos sociais de sucesso para buscar suas próprias significações. Conforme Vicente Franz Cecim, em artigo sobre a obra: “Larry Darnell, aquele que preferia não-viver a vida por fora, que estava indisponível para as seduções & armadilhas externas, pois preferia viver a vida vivendo-se: isto é, por dentro. O que é uma arte muito sutil.” Os caminhos que trilha são vários, empíricos e teóricos, passando pela filosofia, pela teologia e pela literatura. 
Essa associação – recorrente na literatura universal (veja-se Dom Quixote, Emma Bovary e Ana Karênina, para citar apenas alguns exemplos) - entre o estudo e a leitura com personagens que fogem à ordem estabelecida por meio de seus questionamentos e comportamentos é colocada de forma crítica num diálogo em particular, entre o personagem-escritor e Larry (p.35): 

- Bom, você sabe que, quando uma pessoa não consegue fazer nada, vira escritor – disse eu com uma risadinha.

- Não tenho talento. 

A ironia com que o autor explicita uma visão limitada do trabalho intelectual (presente em outros ditos, tais como neste sobre a profissão de professor: “Quem sabe, faz; quem não sabe, ensina.”), é prontamente respondida pela honestidade de Larry, que coloca de modo objetivo e incisivo a necessidade de ter talento, ou seja, o trabalho intelectual exige a mobilização de aptidões especiais que poucos realmente têm (ou desenvolvem, pois até que ponto talento é inato ou se constrói, já rende outra discussão...). 
“O fio da navalha”, publicada em 1944, é uma das obras mais conhecidas do escritor, que morreu aos 91 anos, depois de ter morado em diversos países como a Inglaterra, a Alemanha, a Espanha, a Rússia, os Estados Unidos e a França. 



Sobre a obra, veja também os artigos de Vicente Franz Cecim "Somerset Maugham: no fio da navalha" (www.revista.agulha.nom.br/ag21maugham.htm) e de Valdemir Pires (www.letraselivros.com.br/index2.php?option=com_content&do_pdf=1&id=296). 


(The razor's edge, 1944.)

O fio da navalha. Tradução de Ligia Junqueira Smith. Porto Alegre: Globo, 1979 (351 páginas)

DA PREGUIÇA COMO MÉTODO DE TRABALHO - Mario Quintana

Por Ema Dias dos Santos 


Certa vez, abalancei-me a um trabalho intitulado “Preguiça”. Constava do título e de duas belas colunas em branco, com a minha assinatura no fim. Infelizmente não foi aceito pelo supercilioso coordenador da página literária.
Já viram desconfiança igual?
Censurar uma página em branco é o cúmulo da censura. 


(Quintana, 2000, p.6-7)





Quintana, “o poeta das coisas simples”. Simplicidade, entretanto, plena de profundidade. O olhar singular que lança ao cotidiano, ao prosaico, à rua, ao ser humano, faz com que seus escritos lembrem um caleidoscópio de palavras, colorido pelo humor, pela ironia e, sobretudo, pela ternura:



Terapias
Pílulas das mais variadas cores, cada uma para as diversas horas do dia. Isso não quer dizer que curasse os velhinhos, não. Mas sempre dava um colorido à mesmice de suas vidas.
 (p.24)


O tempo
O tempo é um ponto de vista. Velho é quem é um ano mais velho que a gente.
(p.61)

Mas o assunto desta crônica era sobre o esquecimento. Na verdade nunca me esqueço de nenhum nome nem de nenhuma cara. Só que não sei distribuir os nomes pelas caras. (p.25)

O modo inusitado com que lida com expressões comuns e frases feitas pode nos conduzir, tanto a um cúmplice sorriso maroto, como a profundas reflexões existenciais e filosóficas:

A morte é a única coisa incerta que existe. (p.91)

Ao pé da letra
Enforcar-se é levar muito a sério o nó na garganta. (p.48)

Sala de espera no consultório. Sala de espera? Não: sala de recordações. É que as revistas são tão antigas que a gente – ó milagre! – fica sempre alguns anos mais jovem. (p. 130)

A humildade, tão próxima da sabedoria, com que trafega pelos mais variados assuntos pode ser uma das explicações para a notável comunicação que seus textos têm com todo o tipo de público. Sobre isso diz Armindo Trevisan, no artigo Vôo sereno no azul do céu mais alto“A poesia de Mário Quintana impressiona, em primeiro lugar, por sua humildade – palavra que deriva remotamente de húmus. Humilde é quem tem os pés sobre a terra. Ora, o poeta, que a legenda tornou aéreo, nunca foi desligado da realidade.”
Sua linguagem evidencia um tom lúdico, sem medo do emocional, com muitas metáforas cromáticas, exclamações e reticências. O poeta-menino brinca com a linguagem, mescla coloquial e erudito, com lirismo e sensibilidade. O resultado é um texto leve, cuja leitura flui prazerosamente. O que não significa superficialidade ou alienação. Pois, como diz Trevisan, “que ninguém se deixe levar pela leveza da poesia de Quintana! Ela é leve, sim, mas como o ar que vivifica (ou envenena). Diríamos: existe um peso metafísico no aparente alumínio verbal de Quintana!”. O aspecto crítico está muito presente, especialmente por meio da irreverência e do humor, “o humor-denúncia, que investe contra o quadradismo das convenções, sobretudo o quadradismo da vida, aquilo que, no entender do mesmo Bérgson, se torna risível por se opor à vida.” (Trevisan, 1994).

Infinitos
O homem, esse exagerado, acha o Cosmos infinitamente grande e o micróbio infinitamente pequeno. E ele? Ora, ele acha-se do tamanho natural. Mas, aos olhos de Deus, cada ser é um universo. E, só para vos dar uma trinca de exemplos, a estrela Sirius, o bacilo de Kock e o prefeito de Três Vassouras são infinitamente do mesmo tamanho. (p.67)

É isso mesmo
Quem nunca se contradiz deve estar mentindo. (p.65)

Imaturidade
Ah! esses buzinadores... Permitir que eles guiem um carro é o mesmo que dar um apito para uma criança. (p.39)

Esta vida
Vale a pena estar vivo – nem que seja para dizer que não vale a pena. (p.49)

Não há nada que empeste mais que um desinfetante. (p.83)

A obra, que teve sua primeira edição em 1987 e foi reeditada em 2007, reúne textos de diversos gêneros – crônicas, contos, poemas e entrevistas - publicados na coluna que Quintana mantinha no “Caderno H” do jornal Correio do Povo.

Conteúdo da obra disponível em:

Sobre o autor, leia também o artigo:
TREVISAN, Armindo. Vôo sereno num azul do céu mais alto. In: Mario. Porto Alegre: CEEE, 1994.

RATOS E HOMENS - John Steinbeck

Por Ema Dias dos Santos






“(...) esses homens que vêem suas vontades cederem como um papel sendo rasgado


(Castor Del Aguila) 




Em Ratos e homens, o escritor norte-americano John Steinbeck – Prêmio Nobel de Literatura em 1962 - retrata a profunda desigualdade social da América rural dos anos 30. Para alguns homens, uma América de oportunidades; mas para outros, não há alternativa senão arrastar-se como ratos e sujeitar-se a condições ultrajantes bem próximas do trabalho escravo. Nesse cenário se movem os ratos-homens George e Lennie. Personagens contrastantes numa estreita relação que lhes serve de refúgio contra a solidão que os ameaça constantemente. E é na interação entre os dois eixos estabelecidos pelos protagonistas que se move toda a narrativa. Há um aspecto duro e realista, característico da obra de Steinbeck – como em As vinhas da ira, por exemplo –, resultado provável de suas próprias experiências e de seu aguçado sentido de observação; mas há também o sonho, a nobreza de que se revestem alguns de seus personagens diante de situações extremas. Lennie é enorme, forte, porém com idade mental de uma criança, o que não lhe permite avaliar as situações de forma adequada, e nem mesmo ter uma noção de sua própria força que lhe permita controlá-la. Isso faz com que viva se envolvendo em problemas. Nessas ocasiões, o astuto companheiro George, embora pequeno, é quem desempenha a função de seu guardião. Ainda que George viva reclamando de Lennie e dizendo que seria melhor sem ele, é uma relação em que ambos se sustentam e se protegem. Lennie é a criança, o sonho e a força física; George o adulto, a razão e a inteligência. Os dois estão tão ligados, que uma separação representa perder um pedaço de si mesmo e reduzir-se à solidão. O final da narrativa é impactante e, apesar de drástico, de uma piedade e de uma coragem comoventes. 


(Of mice and men, 1937.)
Ratos e homens. Tradução de Ana Ban. Porto Alegre: L&PM, 2005. (145 páginas - pocket)

O PRAZER DO TEXTO - Roland Barthes

Por Ema Dias dos Santos
Meu primeiro contato com a obra de Barthes foi na década de 80, quando cursava a disciplina de Filosofia da Comunicação. Primeiro li o texto Aula, que registra uma aula inaugural da cadeira de Semiologia Literária do Colégio de França, proferida em janeiro de 1977. Fiquei encantada. A fluidez com que tece seu discurso - sempre com desenvoltura e inteligência -, e sua forma absolutamente peculiar de lidar com a linguagem me impressionaram profundamente. Foi já através desse texto que me deparei com a preciosa idéia de um “saber com sabor”:“(...) a escritura faz do saber uma festa. (...) a escritura se encontra em toda parte onde as palavras têm sabor (saber e sabor têm, em latim, a mesma etimologia)” (p. 21). Depois mergulhei na leitura deO prazer do texto. E, algum tempo após, assisti à montagem teatral baseada em Fragmentos de um discurso amoroso, encenada pelo grupo de Antônio Fagundes. Passeei também por outras produções do autor, mas, definitivamente, as mais significativas para mim tem sido mesmo Aula e, em especial, O prazer do texto, verdadeiras obras-primas que merecem ser lidas, relidas e mantidas como livros fundamentais para quem se interessa pelo universo da palavra. 
O prazer do texto não é apenas uma obra sobre literatura, mas um convite instigante para o pensamento e a reflexão, transitando por diversas áreas. A intertextualidade é constante, com uso freqüente de citações e referências a vários autores: “a literatura como uma grande colagem de saberes” (Giamatei, 2003). O autor vai lançando suas idéias em trechos geralmente curtos, simultânea e paradoxalmente densos e leves, seduzindo o leitor com seu estilo. Até mesmo na superfície da própria linguagem Barthes coloca em prática sua proposta de uma subversão sutil: ele não tem pudor de abusar de dois-pontos (às vezes repetidos na mesma frase), de parênteses, de travessões, de aspas, de negritos, ou até mesmo da ausência de algumas pontuações onde elas seriam previsíveis.
Se o objeto livro, como afirmou John Steinbeck, é “uma das pouquíssimas mágicas autênticas que nossa espécie criou”, Roland Barthes consegue explicitar um pouco do funcionamento dessa mágica que se dá através do texto, na qual escritor e leitor são os principais protagonistas. Ele oferece algumas pistas que podem ajudar a responder à pergunta: O que impele o escritor a produzir textos? Por que e para quem ele escreve?
Esse leitor, é necessário que eu o procure, (que eu o “engate”), sem saber onde ele está. Cria-se então um espaço da fruição. Não é a “pessoa” do outro que me é necessária, é o espaço: a possibilidade de uma dialética do desejo, de uma imprevisão do fruir: que os dados não estejam lançados, que exista um jogo.(p.37)
O texto é processo e não produto. Não é o veículo da “verdade”, vista como pronta, acabada, inquestionável, como a meta que o leitor deve atingir. O leitor não é um objeto passivo, colocado num plano inferior, e o autor não é um sujeito iluminado, superior, dono da verdade: 
Na cena do texto não existe ribalta: não há por detrás do texto ninguém ativo (o escritor) nem diante dele ninguém passivo (o leitor); não há um sujeito e um objeto. O texto prescreve as atitudes gramaticais: é o olho indiferenciado de que fala um autor excessivo (Ângelus Silesius): “O olho com que eu vejo Deus é o mesmo olho com que ele me vê.” (p.52)
Simplesmente, chega um dia em que se sente uma certa urgência de desaparafusar um pouco a teoria, de deslocar o discurso, o idioleto que se repete, toma consistência, e de lhe dar o impulso de uma pergunta. O prazer é essa pergunta. Como nome trivial, indigno (quem se afirmaria hoje hedonista, sem rir?), pode dificultar o retorno do texto à moral, à verdade: à moral da verdade: é um indireto, um “derrapante”, se assim se pode dizer, sem o qual a teoria do texto tornaria a ser um sistema centrado, uma filosofia do sentido. (p. 113) 
E, livres da noção de verdade única, podemos então imaginar o que há de promissor na idéia de uma “Babel feliz”, onde a diferença não só é possível, como é valorizada: 
Que a diferença se insinue subrepticiamente no lugar do conflito”. (p.51) 
(...) a agressão é apenas a mais deformada das linguagens. (p.51)
(...) quem é que suporta sem vergonha a contradição? Ora, este contra-herói existe: é o leitor de texto, no momento em que experimenta o seu prazer. Então o velho mito bíblico inverte-se, a confusão das línguas deixa de ser uma punição, o sujeito tem acesso à fruição através da coabitação das linguagens, que trabalham lado a lado: o texto de prazer é Babel feliz. (p.36) Para quem aprecia o tempero do “sal das palavras”, eis duas excelentes leituras, afinal, “é esse gosto das palavras que faz o saber profundo, fecundo” (Aula, p.21). 
São obras pouco extensas, de preço bem acessível (meus exemplares são antigos, mas há edições mais atualizadas pela Cultrix/Aula e pela Perspectiva/O prazer do texto, por menos de R$ 15,00 cada).
(Le plaisir du texte, 1973. Leçon, 1977.)
O prazer do texto. Tradução de Maria Margarida Brahona. Lisboa: Edições 70, 1974. (117 páginas)

Aula. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Cultrix. (89 páginas)
Leia também:
PERRONE-MOYSÉS, Leyla. Roland Barthes – o saber com sabor. São Paulo: Brasiliense, 1983.
GIAMATEI, Crícia. A escrita do deleite. Jornal da USP. 2003 Set 15 a 21 [acesso em 2009 Set 21]. Disponível em:http://www.usp.br/jorusp/arquivo/2003/jusp658/pag17.htm

O GRANDE GATSBY - Francis Scott Fitzgerald

Por Ema Dias dos Santos

“Tudo ocorrera de uma maneira muito descuidada e confusa. Eles eram gente descuidada (...): destruíam coisas e pessoas e, depois, se refugiavam em seu dinheiro ou em sua indiferença, ou no que quer que fosse que os mantinha unidos, e deixavam que os outros resolvessem as trapalhadas que haviam feito...” (p.154)




Gatsby é um sujeito de origem pobre que enriquece através do tráfico de bebidas durante a Lei Seca nos Estados Unidos dos anos 20. Sua busca pela ascensão social tem o propósito de recuperar um amor perdido no passado. Assim poderia ser resumido o enredo do livro, o que talvez levasse a crer que se trata apenas de um romântico e pouco significativo melodrama. Entretanto, a obra tem sido apontada como um dos melhores romances em língua inglesa do século 20: “numa pesquisa elaborada em 1998, pela tradicional coleção de livros Modern Library, (...) 'O grande Gatsby', publicado em 1925, aparece em segundo lugar, atrás apenas do clássico 'Ulisses', do irlandês James Joyce” (Nuha, 2006).


Há outros aspectos, além da história em si, que podem justificar esse reconhecimento (que veio apenas depois da morte do autor, pois, em vida, o livro não vendeu muitas cópias). Um deles é a forma como a história é narrada, filtrada pela subjetividade do personagem-narrador Nick, marcada por metáforas e simbolismos. Outro é a mescla - e, em alguns aspectos, o embate - entre o romântico e o moderno, entre a tradição e a experimentação. Além disso, há o modo como o autor expõe a superficialidade e o vazio das existências da chamada “geração perdida” (o próprio Fitzgerald morreu aos 44 anos, quando, já debilitado pelos efeitos da bebida, sofreu um ataque cardíaco). E, ainda, o paralelo que se pode traçar entre a trajetória de Gatsby e a própria história, passada e atual, dos Estados Unidos.
Algumas críticas apontam a impressão de que “falta” algo, principalmente na constituição do personagem central. O próprio autor chegou a afirmar que o personagem era “turvo e fragmentário”: “Nunca em tempo algum eu próprio consegui vê-lo, a Gatsby, o personagem, claramente – pois ele começou como um homem que eu conhecia e depois transformou-se em mim mesmo – e a amálgama nunca foi completa em minha mente” (Costa, 1978). Por outro lado, outros apontam que isso colabora para criar uma aura mítica em torno do personagem.


De qualquer modo, é uma leitura interessante, sobretudo para refletir sobre a frivolidade, a irresponsabilidade e o niilismo que toma conta de uma sociedade pautada por valores essencialmente materiais. E para nos perguntarmos aonde isso pode nos conduzir.


(The great Gatsby, 1925.)
O grande Gatsby. Tradução de Brenno Silveira. São Paulo: Clube do Livro, 1988. (156 páginas)


Leia também:
COSTA, Luiz Angélico da. O grande Gatsby e o sonho americano. Universitas. Salvador (19 – especial): 61-73, 1978. [acesso em 2009 Set 29]. Disponível em:http://www.portalseer.ufba.br/index.php/universitas/article/viewFile/1227/820NUHA, Danilo. Grande Gatsby. Recanto das Letras, 11/08/2006. [acesso em 2009 Set 29]. Disponível em:http://recantodasletras.uol.com.br/resenhasdelivros/213827

FÁBULAS ITALIANAS - Italo Calvino

Por Ema Dias dos Santos


“C´era una volta...”


Em Fábulas italianas, Italo Calvino reúne 82 histórias populares de toda a Itália numa obra primorosa para ser lida por todas as idades. É bom que se saiba que não se trata da fábula em sua versão, como diz o próprio autor, “floreada e edulcorada” (p.10) que geralmente associamos à literatura infantil. Nas histórias consagradas que comumente conhecemos quando pequenos e que se tornaram referência desse tipo de texto para nós, houve uma adaptação a uma visão idílica de infância e a fins moralizantes, sendo retirados delas elementos como o horrendo, o vulgar, o grotesco. Nas compilações “originais” mais antigas – Perrault, Irmãos Grimm, As mil e uma noites -, esses aspectos estavam integrados à narrativa, e é nessa linha que as Fábulas iItalianas são relatadas, embora moduladas pela sensibilidade do autor. 


O que de forma alguma desaconselha sua leitura também para crianças. A fábula assim apresentada cumpre um papel estruturante da personalidade e de constituição de uma cosmovisão bem melhor, por exemplo, que a maioria dos jogos eletrônicos aos quais as novas gerações estão hoje expostas. Além do que, se recuperada a tradição da oralidade através da relação que se estabelece no ato de contar/ouvir – isso, por si só, representa uma das mais ricas experiências de convivência que podemos nos proporcionar e a nossas crianças. Diz, sobre isso, o próprio autor, no prefácio da obra:


“A ‘barbárie’ natural da fábula rende-se a uma lei de harmonia. Não existe aqui aquele contínuo e imenso espirrar de sangue dos cruéis Irmãos Grimm; é raro que a fábula italiana atinja a truculência, e, mesmo se é contínuo o senso da crueldade, da injustiça inclusive desumana, como elemento com o qual sempre temos de nos haver, se os bosques também aqui fazem eco dos prantos de tantas donzelas ou esposas abandonadas com as mãos decepadas, a ferocidade sanguinária jamais é gratuita e a narração não se detém para maltratar a vítima, nem para demonstrar piedade, mas corre rumo à solução reparadora. (...)


Pelo contrário, na fábula italiana perpassa um contínuo e sofrido estremecimento de amor (...)

O impulso para o maravilhoso permanece predominante mesmo se confrontado com a intenção moralista. A moral da fábula está sempre implícita, na vitória das virtudes simples das personagens boas e no castigo das perversidades igualmente simples e absolutas dos malvados; quase nunca se insiste nisso de forma sentenciosa ou pedagógica. E talvez a função moral que a narração de fábulas tenha no entendimento popular deva ser buscada não na direção dos conteúdos, mas na própria instituição da fábula, no ato de contá-la e ouvi-la.” (p.33-5)

“Quem sabe o quanto é raro na poesia popular (e não popular) construir um sonho sem refugiar-se na evasão, apreciará estas pontas extremas de uma autoconsciência que não rechaça a invenção de um destino, esta força de realidade que explode inteiramente em fantasia. Melhor lição, poética e moral, as fábulas não poderiam nos dar.” (p.37)


Trata-se de um livro de leitura fluente e deliciosa, para ser degustado por leitores experientes ou iniciantes, capaz de agradar aos mais diversos paladares. E, para finalizar, nada melhor que o depoimento do próprio autor, que num trecho do prefácio relata:


“Agora, a viagem entre as fábulas terminou, o livro está pronto, escrevo este prefácio e já estou fora: conseguirei voltar a pôr o pé no chão? Durante dois anos vivi entre bosques e palácios encantados (...). E nesses dois anos, pouco a pouco, o mundo ao meu redor ia se adaptando àquele clima, àquela lógica (..). 

Agora que o livro terminou, posso dizer que não foi uma alucinação, uma espécie de doença profissional. Tratou-se da confirmação de algo que já sabia desde o início (...), aquela única convicção que me arrastava para a viagem entre as fábulas. E penso que seja isso: as fábulas são verdadeiras.


São, tomadas em conjunto, em sua sempre repetida e variada casuística de vivências humanas, uma explicação geral da vida, nascida em tempos remotos e alimentada pela lenta ruminação das consciências camponesas até nossos dias; são o catálogo do destino que pode caber a um homem e a uma mulher (...); e sobretudo a substância unitária do todo: homens animais plantas coisas, a infinita possibilidade de metamorfose do que existe.” (p.14-5)

(Fiabe Italiane, 1957.)
Fábulas italianas. Tradução de Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. (454 páginas)




Leia também:
MONDADORI, Oscar. Fiabe italiane. Monografie critiche. 2001Jul 12 [acesso em 2009 Out 06]. Disponível em:http://www.italialibri.net/opere/fiabeitaliane.html

HORIZONTE PERDIDO - James Hilton

Por Ema Dias dos Santos
Quatro passageiros - um jovem americano (Mallinson), e três ingleses (o corajoso Conway, o suposto Barnard, e a missionária Miss Brinklow) - embarcam num avião que lhes é designado para fugir de uma conturbação no Extremo Oriente. Entretanto, ficam surpreendidos ao constatar que o rumo tomado pela aeronave é outro, e que um piloto de fisionomia oriental se apoderara do aparelho. Eles haviam sido raptados. Seu destino: Shangri-La, nas altas montanhas do Tibete.

Através deste livro, James Hilton concebeu uma versão da utopia do paraíso perdido que se tornou clássica, sendo incorporada no imaginário coletivo como um de seus sinônimos. Além de uma instigante reflexão sobre o tema, que suscita muito mais perguntas do que apresenta respostas, a história é construída na forma de aventura, e muito bem narrada, o que compensa largamente eventuais deficiências na construção dos personagens.

Os valores ocidentais e orientais estão em constante jogo, quer em confronto, em convivência ou em interação. O próprio mosteiro tem tradições budistas e também cristãs. Questões interessantes podem brotar das reações dos personagens diante das diferenças culturais:

    "- Que é que os lamas fazem?
     - Devotam-se à contemplação, minha senhora, e à pesquisa da sabedoria.
     - Mas isso não é fazer alguma coisa.
     - Então, minha senhora, não fazem nada.
     - Era o que eu pensava." (p.108)
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    "É significativo que os ingleses considerem a indolência um vício. Nós, pelo contrário, lhe damos grande preferência sobre a pressa. Não é verdade que há demasiada pressa no mundo atualmente, e não seria talvez melhor se houvesse mais pessoas indolentes?" (p.185)
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   "- É justamente como eu disse: este estabelecimento atende a todos os gostos.
     - É possível, se você gosta da prisão – repontou Mallinson.
     - Bem, sobre este assunto há dois modos de ver. Meu Deus, quando se pensa em toda a gente que daria tudo o que tem para sair da balbúrdia e vir descansar num lugar como este, e não pode sair! Seria o caso de perguntar quem está preso: nós ou eles?" (p. 199-200)
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    "Arre, que me enforquem se vejo alguma coisa de agradável em continuar vivendo quando já se está meio morto! Antes uma vida curta, mas alegre." (p.233)

Contudo, apenas a poucos são oferecidas as possibilidades mais plenas de incorporar-se a esta utopia. Talvez porque poucos são os que conseguem superar o mero evasionismo - visão dentro da qual a busca do paraíso é sempre uma fuga - para encarar o desafio do autoconhecimento:

    "Adquirirá calma e profundeza, madureza, sabedoria e o cristalino encanto da memória. E, mais precioso que tudo, terá o tempo, esse dom tão raro, tão desejado, que os países ocidentais foram perdendo à medida que o buscavam com mais ardor." (p.169)

E, ao deparar-me com o trecho em que é explicitada a missão de Shangri-La, diante de um futuro assombrado pelo fantasma de uma guerra que a tudo destruiria, não pude deixar de focar minha atenção na relevância que os monges dão à biblioteca, à leitura, ao estudo e às artes:

    "Talvez. Não podemos esperar nenhuma mercê, mas há uma tênue esperança de que sejamos esquecidos. Aqui ficaremos com nossos livros, nossa música e nossas meditações, conservando as frágeis elegâncias de uma época moribunda e buscando a sabedoria de que os homens hão de precisar quando tiverem esgotado todas as suas paixões. Temos uma herança a preservar e transmitir." (p.173-174)

Mesmo relativizando essas concepções à luz do tempo e de tantas transformações que ocorreram desde que a obra foi escrita, faz-nos pensar o quanto é importante não perder de vista o papel vital que a cultura desempenha na trajetória da humanidade, até porque assim poderemos lidar melhor com as mudanças que ainda nos aguardam. Afinal, como afirmou o próprio Bill Gates: “Meus filhos terão computadores, sim, mas antes terão livros. Sem livros, sem leitura, os nossos filhos serão incapazes de escrever - inclusive a sua própria história.”


Lost horizon, Copyright 1933.
  
 Tradução VILA, Francisco Machado e VALLANDRO, Leonel. 14 ed. São Paulo: Círculo do Livro. s.d.
(Há outras edições brasileiras, inclusive mais recentes.)